À medida em que a população se mantém em isolamento social, decorrente da pandemia do Covid-19, um outro problema se agrava entre quatro paredes: a violência doméstica na quarentena que é, infelizmente, um inimigo antigo que atinge famílias, mas principalmente mulheres no Brasil e também no mundo.
Por muito tempo, as mulheres não tinham direito ao voto, não participavam da vida política e do mercado de trabalho e, por isso, estavam predestinadas aos afazeres domésticos. Contudo, com o passar dos anos, os direitos básicos como o de estudar, trabalhar, poder votar e ter voz perante a sociedade, foram sendo conquistados através dos movimentos feministas. No entanto, muitas mulheres ainda lutam por um direito fundamental, que é viver sem violência.
Para compreender melhor sobre esse fenômeno, que vem se intensificando nos últimos meses por conta da pandemia, é preciso dar um passo atrás, e visualizar através da história um melhor entendimento de como essa violência invisível é decorrente do preconceito de gênero.
Origem da discussão sobre a violência doméstica
Como já dito, durante muito tempo as mulheres não possuíam direitos básicos e várias foram as mudanças para chegar nos dias de hoje. O legislador do Código Civil de 1916, por exemplo, deixava claro os papéis dos cônjuges, onde o homem era visto como o provedor do lar, enquanto a mulher, era submissa a esse regime patriarcal.
No âmbito penal, por meio do seu código de 1940, vigente até os dias de hoje, só garantia a proteção à mulher contra vários crimes sexuais caso ela fosse considerada “honesta” e essa realidade só foi alterada em 2005 pela Lei 11.106/05. Ou seja, a condição jurídica conduzia a forma que as mulheres eram vistas perante a sociedade.
Mais tarde, durante os anos 70, o assassinato de muitas mulheres deram visibilidade para a questão da violência doméstica que sempre aconteceu, porém de forma invisível. Dentre os casos, o assassinato de Ângela Diniz teve destaque gerando, inclusive, protestos populares.
Ângela havia sido morta com 4 tiros na cabeça, disparados pelo seu companheiro, Raul Fernando do Amaral Street, conhecido como “Doca Street”. Em sua tese de defesa, foi alegado que ele havia agido em legítima defesa da honra e “matado por amor”. Doca Street foi condenado a dois anos de prisão nesse primeiro julgamento e, devido às manifestações sociais, 5 anos depois ele foi julgado novamente e condenado a 15 anos.
Então, nesse momento, aquela luta que fez com que as mulheres conquistassem seus direitos sociais chega contra a violência doméstica com muito mais força e, por isso, surgiram campanhas emblemáticas como “quem ama não mata”, trazendo visibilidade à violência doméstica e, por isso, por si só, foi uma grande conquista, pois por muito tempo ainda se falava “em briga de marido e mulher, não se mete a colher”.
A partir daí, devido ao enfoque que foi criado sobre a violência doméstica como um problema social e, também, de saúde pública, foi criado como resposta, em 1985, a primeira Delegacia de Polícia de Defesa da Mulher. Ela surgiu como forma de materialização do reconhecimento dessa violência como crime e da responsabilidade do Estado de criar mecanismos que permitam o combate a esse fenômeno.
Contudo, mesmo diante desses avanços, as mulheres continuam sofrendo e convivendo, muitas vezes, com o inimigo. Foi em 2006, através da Lei Maria da Penha que houve um divisor de águas na questão da violência. Confira abaixo.
Lei Maria da Penha
Maria da Penha, outro caso emblemático, foi vítima de duas tentativas de homicídio ocorridos em 1983. Em um primeiro momento, seu companheiro tenta assassiná-la com um disparo em suas costas enquanto dormia, deixando-a paraplégica e, posteriormente, ele tentou eletrocutá-la durante um banho.
Mesmo diante de tais crimes, seu violador foi julgado 2 vezes e, em ambos, saiu em liberdade. No primeiro, por meio de recursos solicitados pela sua defesa e, no segundo, por alegações de irregularidades no processo. Diante disso, o caso ganhou notoriedade internacional e foi parar na Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Como resultado, a Lei 11.340, sancionada em 7 de agosto de 2006 e batizada com o seu nome, Maria da Penha, como forma de simbolizar a sua luta contra a violência doméstica.
Suas principais inovações
- Tipifica e define a violência doméstica e familiar contra a mulher;
- Estabelece as formas da violência doméstica contra a mulher como física, psicológica, sexual, patrimonial e moral;
- Determina que a violência doméstica contra a mulher independe de sua orientação sexual;
- Determina que a mulher somente poderá renunciar à denúncia perante o juiz;
- Ficam proibidas as penas pecuniárias (pagamento de multas ou cestas básicas);
- Retira dos juizados especiais criminais (Lei nº 9.099/05) a competência para julgar os crimes de violência doméstica contra a mulher;
- Altera o Código de Processo Penal para possibilitar ao juiz a decretação da prisão preventiva quando houver riscos à integridade física ou psicológica da mulher;
- Altera a lei de execuções penais para permitir ao juiz que determine o comparecimento obrigatório do agressor a programas de recuperação e reeducação;
- Determina a criação de juizados especiais de violência doméstica e familiar contra a mulher com competência cível e criminal para abranger as questões de família decorrentes da violência contra a mulher;
- Caso a violência doméstica seja cometida contra mulher com deficiência, a pena será aumentada em um terço.
Nesse sentido, a Lei Maria da Penha foi de grande importância e avanço para a luta do direito à vida das mulheres sem violência. Ela explicita, por exemplo, que a violência não é só a física, podendo ser também a psicológica que é aquela:
que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, violação de sua intimidade, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação (art. 7º, II, da Lei 11.340).
No entanto, mesmo sendo um fenômeno que ganhou visibilidade e deixou de ser um problema que ocorria somente entre quatro paredes, sem que ninguém soubesse, a violência doméstica não deixou de ocorrer.
Feminicídio
De acordo com dados das Nações Unidas, mesmo possuindo a Lei Maria da Penha, o Brasil é o 5º país onde mais de mata mulheres no mundo, e é importante ressaltar que essas informações não são coletadas dos processos que chegam às autoridades policiais, e sim, da Organização Mundial da Saúde (OMS), que afirma que 4,8 mulheres são mortas a cada 100 mil.
Diante dessa realidade, foi sancionada em 2015 a Lei do Feminicídio, com a finalidade de alterar o Código Penal, para introduzir o feminicídio como um agravante, isto é, como uma circunstância que irá agravar a condição do réu, podendo a pena variar entre 12 e 30 anos de prisão (art. 121, §2º, VI).
Diferença entre a Lei Maria da Penha e a Lei do Feminicídio
Você deve estar se perguntando como era a punição antes da Lei do Feminicídio e porquê ela foi criada, se já existia a Lei Maria da Penha. Bom, em primeiro lugar, antes da Lei do Feminicídio não havia nenhuma punição diferenciada pelo homicídio ser cometido contra uma mulher pelo fato dela ser mulher. Ou seja, uma pessoa que assassinou uma mulher pela condição do sexo feminino era punida como tão somente homicídio.
Nesse sentido, a Lei surgiu com a finalidade de alterar esse cenário, porque a Lei Maria da Penha não trouxe um rol de crimes, uma vez que seu objetivo é de proteger a vítima da violência doméstica, sem tipificar novas condutas e, por analogia, ela também protege a criança, o idoso e o homem da violência realizada no âmbito doméstico (da casa). Contudo, como já dito, estatisticamente, as maiores vítimas desse tipo de violência são as mulheres.
Violência doméstica na quarentena
Os números de casos e de denúncias têm aumentado durante o período de isolamento social não só no Brasil, como também no mundo. Na França, por exemplo, o governo anunciou que irá pagar quartos de hotel e abrirá centros de aconselhamentos para acolher as vítimas de violência doméstica, uma vez que os índices de denúncias aumentaram consideravelmente. Em Paris, houve uma crescente de 36%, e no restante da França o aumento foi de aproximadamente 32%.
Infelizmente, não para por aí. No México, segundo Nadine Gasman, diretora do Instituto Nacional de Mulheres do México (INMUJERES), as denúncias cresceram desde março – início da quarentena por lá – em 60%. Além disso, na Argentina, nos primeiros 9 dias de quarentena, 6 mulheres já foram mortas.
No Brasil, os números não são muito diferentes, segundo o Ministério Público do estado de São Paulo, a violência contra a mulher cresceu em 30% e, de acordo com os dados levantados em março, 2.500 medidas protetivas foram decretadas em caráter de urgência.
Diante disso, o Tribunal de Justiça de São Paulo desenvolveu um projeto para auxiliar nas denúncias, chamado de “Cartas de Mulheres“. Neste projeto, uma equipe especializada responde informando, por exemplo, os locais de atendimento especializado, isso tudo, é claro, levando em consideração a situação de cada mulher.
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), visando prevenir a violência doméstica, após a confirmação do aumento de casos registrados, informou que criou um grupo para elaborar medidas emergenciais justamente coma finalidade de prevenir e diminuir esses números.
Ademais, o governo de Minas Gerais criou um aplicativo (app), que se chama “MG Mulher”, no qual a vítima da violência encontra endereços e telefones dos locais mais próximos da sua localização para lhe ajudarem em caso de emergência. A vítima também terá acesso a diversos outros conteúdos dentro desse aplicativo, como textos e vídeos sobre a violência doméstica e, principalmente, de como sair desse problema. Você pode fazer o download gratuito na AppStore ou no GooglePlay.
Como forma de ajudar a combater a violência doméstica, a loja Magazine Luiza, por meio de seu app, disponibilizou um botão (no perfil de usuários) de denúncia de violência contra a mulher. Baixe o app, de forma gratuita, na AppStore ou GooglePlay.
Então, podemos observar que o fenômeno da violência doméstica e, principalmente, da violência contra a mulher sempre existiu. Porém, com a pandemia, muitas dessas mulheres estão sendo obrigadas a conviver em período integral com o seu violador. É como se existisse uma pandemia dentro de outra.
Contudo, medidas estão sendo tomadas pelos governadores de diversos estados para impedir que esse problema se intensifique ainda mais. A criação de aplicativos, de sistemas e modos de auxílio às vítimas estão sendo colocados em prática o mais rápido possível.
E se você está enfrentando esse problema ou conhece alguém próximo, denuncie. Ligue para o número 180, a ligação é gratuita e funciona 24 horas por dia. O serviço fornece informações sobre os direitos das mulheres e os locais mais próximos da sua localização mais apropriados para cada caso.
Ótimo artigo! Maioria das vítimas de violência doméstica e de feminicídio tem em comum uma história de relacionamento abusivo, que se desenvolveu ao longo dos anos. Reportagem mostra como identificar essas fases da violência.