No mês de junho comemora-se o Dia do Orgulho LGBTQI+, mais precisamente no dia 28 e, em 2020, mais uma conquista foi alcançada pelos homossexuais e bissexuais do sexo masculino, que foi a liberação da doação de sangue.
O tema sobre a doação de sangue é amplamente divulgada em mídias como redes sociais, televisão, jornais e revistas. Porém, o que não é muito conhecido é que dentre o rol daquelas pessoas impedidas de doar, como por exemplo, pessoas com anemia, hipertensão ou hipotensão arterial, encontravam-se também os homens homossexuais e bissexuais.
Isso mesmo que você leu! Trata-se de um impedimento que não se enquadra na realidade do Brasil quando se olha os números.
De acordo com os dados do Ministério da Saúde do ano de 2016, apenas 1,6% dos cidadãos brasileiros possuíam o hábito de doar sangue, naquela época e, segundo a Organização Mundial da Saúde, o esperado era de que 3% da população fosse doadora para que a demanda fosse suprida.
Então, provavelmente, você deve estar se perguntando: de onde veio esse impedimento? Vamos entender um pouco melhor.
Durante muito tempo, desde quando a AIDS começou nos anos 80, os homossexuais foram a maioria das pessoas infectadas e, somente quando os usuários de drogas injetáveis apresentaram a doença, passou a ser referenciada em públicos heterossexuais também. Ou seja, decorrente da epidemia causada pela AIDS, as pessoas que se consideravam homossexuais foram sendo vistas pela sociedade como “grupo de risco”.
Mais tarde, tal conceito foi substituído por “comportamento de risco”, pois o vírus passou a se espalhar de forma geral, não mais se concentrando em grupos específicos. Hoje, considera-se comportamento de risco aqueles realizados tanto por heterossexuais quanto por homossexuais, sem distinção.
Em 2016, o Ministério da Saúde publica a portaria nº 158, que previa em seu artigo 64, IV, a desqualificação temporária do homem que tivesse relações sexuais com outros homens, assim como o artigo 25, XXX da Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) de 2014.
A partir daí, surgiram debates e questionamentos em relação a essa questão. Seria esse impedimento constitucional ou inconstitucional?
Para responder, é preciso conhecer um pouco mais sobre os aspectos que contornam esse tema.
O que seriam normas inconstitucionais?
Ao indicar que uma norma é inconstitucional, significa dizer que esse dispositivo não está em conformidade com o texto Constitucional. Mas, apenas perceber que um determinado ato normativo não está de acordo com a Carta Magna não é suficiente, por isso o legislador criou um mecanismo para controlar tais atos: o Controle de Constitucionalidade.
Esse controle ocorre por duas vias: a difusa e a concentrada. O primeiro caso ocorre quando o juiz não aplica uma determinada lei por ela se mostrar, naquele caso, incompatível com o texto constitucional, ou seja, questiona-se a compatibilidade de forma indireta em um caso específico. Já o segundo controle – o concentrado – analisa a constitucionalidade do texto legal em si, independentemente de uma situação concreta.
A partir daí, existem 4 dispositivos que são aplicados por via de controle concentrado:
- Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI);
- Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC);
- Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF);
- Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO).
Essas ações fazem parte do que conhecemos por “Controle de Constitucionalidade”, no que tange ao aspecto concentrado e possuem finalidades distintas. A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), por exemplo, questiona a norma contrária a preceitos tidos como essenciais pelo texto constitucional. Além disso, ela é apenas utilizada quando a situação não se enquadrar nas hipóteses dos outros dispositivos, ou seja, ela atua de modo subsidiário.
Por sua vez, a Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC), é um meio para resolver aquelas incertezas decorrentes de decisões distintas dos Tribunais. Assim, em uma situação hipotética em que é ajuizado uma ADC e for julgada procedente, aquela lei deverá ser aplicada justamente por ter sido declarada Constitucional.
No que se refere à Ação Direta de Inconstitucionalidade, segundo dados coletados em 2018 pelo Conselho Nacional de Justiça, é a ação mais utilizada tendo em torno de 5,6 mil ações. Ela pode vir a ocorrer de duas formas: por meio de uma ação, quando há incompatibilidade entre Leis ou atos do Poder Público com o texto constitucional; ou por omissão, quando o legislativo deveria ter regulamentado alguma norma constitucional de eficácia limitada, isto é, quando ela precisa de outra para exercer suas funções de maneira plena, mas não o fez.
As pessoas competentes para ajuizar a ADI e ADC estão dispostas no artigo 103 da Constituição, quais sejam:
- Presidente da República;
- Mesas do Senado Federal e da Câmara dos Deputados;
- Casas legislativas e pelos Governadores dos estados e do Distrito Federal;
- Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil;
- Partidos políticos com representação no Congresso Nacional;
- Procurador-Geral da República;
- Confederações sindicais e pelas entidades de classe de âmbito nacional.
Como já dito, o objeto da ADI é uma lei ou ato normativo federal ou estadual, conforme o artigo 102, I, da Constituição Federal. As normas questionadas nesta Ação Direta de Inconstitucionalidade fazem parte dos atos normativos, tendo em vista que possuem os requisitos para tanto, quais sejam:
- Autonomia jurídica;
- Abstração;
- Generalidade;
- Impessoalidade.
Além disso, por obedecer o Princípio da Indisponibilidade do interesse público, uma vez proposta essas ações de controle de constitucionalidade – ADI, ADC e ADPF – a desistência não será admitida.
Uma discussão antiga que voltou a ser debatida é a ADI nº 5543, proposta em 2016, pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB). Essa Ação Direta de Inconstitucionalidade, tem como objetivo a declaração de inconstitucionalidade das normas do Ministério da Saúde e da Anvisa, citadas anteriormente, que dizem que homossexuais e bissexuais do sexo masculino são inaptos temporariamente à doação de sangue.
O julgamento teve início em outubro de 2017 e seu relator, o ministro Edson Fachin, votou pela inconstitucionalidade de tais normas, assim como os ministros Luís Roberto Barroso, Rosa Weber e Luiz Fux. No entanto, Gilmar Mendes pediu mais tempo para analisar o processo, que só voltou a ser julgado em maio de 2020, pois seria uma das soluções para as quedas dos estoques de sangue decorrente da pandemia do COVID-19.
Argumentos favoráveis à declaração da inconstitucionalidade
Os argumentos eram de que as normas mencionadas acima faziam com que os bancos de coleta de sangue recusassem o material coletado de homens homossexuais e bissexuais e, por isso, afrontaria a dignidade da pessoa humana e a liberdade de autodeterminação, conferidas pelo artigo 1º, inciso III, da Constituição.
Conforme as normas do Ministério da Saúde e da Anvisa, um caso hipotético funcionava da seguinte forma:
Pedro, homem, homossexual, possui um relacionamento de 3 anos com João e mantém com ele relações sexuais. Nesse caso, tanto Pedro quanto João não poderiam doar sangue, de forma quase definitiva, porque a cada nova relação sexual entre os dois, iniciam uma nova contagem de 12 meses para eles serem considerados aptos a doar sangue.
O mesmo não acontecia com homens heterossexuais, que possuem a vida sexual ativa, como a de Pedro e João no exemplo acima. Ou seja, nesse sentido, as normas também seriam contrárias ao Princípio da Igualdade, que busca promover a tolerância às diversidades, dizendo que todos são iguais e que a própria Lei não pode fazer nenhuma ou qualquer distinção, seja por preconceito relacionado à cor, sexo, idade ou quaisquer outras forma de discriminação (art. 5º, caput, CF/88).
Argumentos desfavoráveis à inconstitucionalidade
Nem toda história possui apenas um lado e os argumentos trazidos pelo Ministério e pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária defendem a constitucionalidade de suas normas. Segundo elas, o impedimento não era feito com o objetivo de discriminar os homens que possuem relações sexuais com outros homens, e sim para garantir a máxima qualidade e segurança para os bancos de sangue.
Além disso, alegaram que o impedimento era feito conforme evidências epidemiológicas e técnico-científicas, seguindo ainda, as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS), que inclui como perfil de alto risco, em seu manual de seleção de doadores, os homens homossexuais. Ainda de acordo com a OMS, possuem 19,3 vezes mais chances de terem o vírus da AIDS e, por isso, apoiam o impedimento como padrão.
Contudo, vale dizer que a própria OMS, em 2018, reconheceu que seu manual está desatualizado, uma vez que foi desenvolvido num momento em que as pesquisas sobre a doação de sangue estavam evoluindo.
Resultado do Julgamento
No dia 8 de maio de 2020, a maioria dos ministros do STF votou para declarar inconstitucionais as restrições feitas pelo Ministério da Saúde e pela Anvisa. Entenderam que é função do Estado Democrático de Direito afastar e impedir restrições realizadas em razão da autodeterminação manifestada em sua orientação sexual, de modo que ao impedir e dispensar o sangue de um homem que teve ou tem relações com outros homens, estariam dispensando o próprio indivíduo e confrontando, consequentemente, princípios constitucionais.
Segundo o relator, Edson Fachin, as normas declaradas inconstitucionais voltavam a estabelecer os homossexuais masculinos em “grupos de risco” que, como já dito, é um expressão ultrapassada justamente por se tratar de uma discriminação. Além disso, ele diz que a restrição impedia que esses homens participassem plenamente da execução de uma política pública na área da saúde que beneficia toda a população.
Ainda, segundo o ministro, há uma discriminação indireta – aquela que não possui intenção – que causa um impacto desproporcional por:
- Ofender a dignidade da pessoa humana (autonomia e reconhecimento);
- Impedir que as pessoas sejam como são (art. 1º, III, CRFB);
- Impossibilitar que as pessoas fossem tratadas como iguais em relação aos demais cidadãos (art. 5º, caput, CRFB);
- Induzir o próprio Estado a não promover o bem de todos sem preconceitos de sexo e quaisquer outras formas de discriminação – art. 3º, IV, CRFB.
Então, é impossível negar que, no Brasil, a população LGBTQIA+, sofre diariamente vários tipos de violência, inclusive as de cunho físico, psicológico e moral, como acabamos de ver. O não reconhecimento do sangue dessa população como sangue apto a ser doado é também não reconhecer a própria humanidade nessas pessoas, e foi basicamente nesse argumento que a maioria dos votos se embasaram.
Assim, o sangue doado é analisado de forma igualitária, ou seja, passa pelos mesmos procedimentos para que não haja nenhum risco de contaminação, seja um sangue de um homem homossexual ou heterossexual. A análise, a partir da ADI, é focada nos riscos envolvidos na conduta individual e não de um grupo específico.
Muito sangue tem sido derramado em nome do preconceito e discriminação, ao invés de estarem sendo doados. Porém, espera-se que, com o resultado da ADI 5543, as pessoas que precisam de transfusão de sangue possam ser beneficiadas.
E você, o que achou da decisão do STF? Conte para gente nos comentários!