“O advogado só é advogado quando tem coragem de se opor aos poderosos de todo gênero que se dedicam à opressão pelo poder. É dever do advogado defender o oprimido. Se não o faz, está apenas se dedicando a uma profissão que lhe dá o sustento e à sua família. Não é advogado”
Sobral Pinto.
O mineiro Heráclito Fontoura Sobral Pinto, nascido em 5 de novembro de 1893, foi um dos juristas mais importantes da história do Brasil, tendo participado de praticamente todos os eventos marcantes de nosso país, ao longo do século XX. Nos dois governos totalitários enfrentados pelo Brasil, o Estado Novo de Vargas e a ditadura militar, ele foi um ferrenho defensor dos Direitos Humanos dos presos políticos. Além disso, foi um dos membros mais importantes da Ordem dos Advogados do Brasil e conselheiro de seu clube de futebol do coração, o América-RJ.
A série “Grandes Advogados da História do Brasil”, que já contou as histórias de Ruy Barbosa e Luís Gama, hoje irá falar de mais um grande causídico, que deixou sua marca na luta por um país mais justo e igualitário. Continue lendo para saber mais sobre este famoso advogado!
Primeiros anos
Sobral Pinto nasceu numa família humilde em Barbacena, em 1893 e, foi estudar no Rio de Janeiro, na Faculdade Nacional de Direito, a atual UFRJ, onde se formou. Durante a década de 1920, o advogado participou da defesa do Hotel Copacabana Palace. O luxuoso edifício foi planejado para ser inaugurado em 1922, no centenário da independência do Brasil, porém, sua obra atrasou, de forma que ele só abriu as portas dois anos depois.
Durante esse período, porém, o governo realizou sua primeira tentativa para proibir os cassinos e jogos de azar. O problema era que a família Guinle, proprietária do Hotel, já havia gastado uma fortuna no cassino, e não queria perder o investimento. Assim, contrataram um então jovem Sobral Pinto, na época com 30 anos, para derrubar a proibição. A defesa do advogado foi tão brilhante que a licença para o funcionamento dos cassinos foi prorrogada por mais alguns anos, até a sua proibição definitiva, em 1946, durante o governo de Eurico Gaspar Dutra.
Defesa de Luís Carlos Prestes e Harry Berger
Pinto era católico fervoroso (tinha o costume de frequentar a missa todos os dias) e também anti-comunista. Mesmo assim, não deixou de lutar pelos direitos humanos de pessoas com quem ele possuía divergências ideológicas, nomeadamente os comunistas Luís Carlos Prestes (fundador da Coluna Prestes) e Harry Berger.
Em 1935, ocorreu a insurreição conhecida como Intentona Comunista, liderada por Prestes e o alemão Berger, que pretendia combater os desmandos do Governo Vargas. Porém, a revolta foi sufocada e seus principais líderes presos. Berger, um ex-deputado na Alemanha, foi levado pelas forças de segurança do governo, e, junto à sua esposa Elise (que depois seria deportada para um campo de concentração nazista, onde viria a falecer), foram barbaramente torturados, não só pelos agentes brasileiros, liderados pelo sádico Filinto Muller, como também por homens da Gestapo, a polícia secreta de Hitler.
Ciente situação deplorável de Prestes e Berger, a OAB fluminense convocou um advogado que, nos últimos anos, vinha fazendo seu nome como um ferrenho combatente a favor dos direitos humanos. Sobral Pinto podia não concordar ideologicamente com seus clientes, mas tinha a plena convicção de que, na condição de seres humanos, não mereciam sofrer tratamento tão deplorável.
Sua defesa de Berger tornou-se célebre por invocar um artigo de uma lei inusitada: a Lei de Defesa dos Animais. Consta que, ao não encontrar um fundamento jurídico que permitisse uma defesa satisfatória para Berger, Pinto pesquisou e encontrou a brecha necessária na decisão do juiz paranaense Antonio Leopoldo dos Santos que condenou João Mansur Karan à prisão por ter morto à pancadas um cavalo de sua propriedade. Os argumentos do habeas corpus de Berger foram baseados no Decreto de Proteção e Defesa dos Animais. Afinal, o código estabelecia que todos os animais no País são tutelados pelo Estado, que, desta forma, deve protegê-los de maus tratos. A lógica de Sobral Pinto era simples, mas brilhante: se até um animal tem seu direito reconhecido pelo Estado, porque um ser humano não teria também direito a um tratamento digno? “Ora, senhor juiz, o Tribunal de Segurança Nacional, mais do que qualquer outra instituição do País, deve honrar a palavra do excelentíssimo senhor presidente da República, que, em circunstâncias tão solenes – como já acentuado -, assegurou, reiteradamente, a toda a nação, que nenhum preso político seria tratado com desumanidade”, argumentou o advogado.
Por fim, Berger finalmente teve condições mais dignas garantidas pela justiça. Ele eventualmente seria libertado pela anistia concedida aos presos políticos, em 1945, e viria a retornar para a Alemanha dois anos depois. Infelizmente, por causa das brutais torturas sofridas no cárcere, Berger (um renomado teórico, que havia passado anos estudando em bibliotecas nos Estados Unidos) nunca mais recuperaria sua sanidade, e viria a morrer em 1959, aos 68 anos, num manicômio na cidade de Eberswalde.
Prestes também viria a ser libertado por causa da mesma lei, em 1945. Inicialmente resistente em se submeter aos “Tribunais de Getúlio”, Sobral precisou de muita persistência para convencer o líder comunista a representá-lo. Mesmo apesar de suas profundas divergências ideológicas, os dois permaneceram amigos até a morte de Prestes, em 1990.
Ditadura Militar
Ao longo dos anos, Pinto teria entre seus clientes alguns dos personagens mais famosos e importantes da história do Brasil, tanto pela esquerda (Carlos Marighella, Miguel Arraes, os citados Prestes e Berger, o líder das Ligas Camponesas Francisco Julião), quanto pela direita (Carlos Lacerda, Plínio Salgado e seus integralistas). Porém, engana-se quem pensa que seu trabalho consistia em defender apenas os “figurões” da época: Sobral se dedicava com o mesmo afinco a defender qualquer cidadão, mesmo os mais pobres, em apuros contra os abusos de governos pouco democráticos.
Em 1955, Sobral cria a Liga de Defesa da Legalidade, que tinha como objetivo lutar pela democracia e pelas eleições para a Presidência. Ele defendeu as posses mesmo de presidentes a quem ele se opunha ideologicamente, como Juscelino Kubitscheck e João Goulart.
Por causa de suas posições ideológicas, Pinto inicialmente apoiou o golpe militar, em 1964, mas logo mudou de ideia, ao perceber a postura ideológica do regime. Assim, naquele mesmo ano, foi ele quem primeiro se referiu ao regime como uma ditadura.
Sobral Pinto se tornaria célebre por não cobrar honorários dos presos políticos a quem passou a defender dos abusos dos militares. Ele atuou na defesa durante o episódio que ficou conhecido como “o caso dos nove chineses”, em que os cidadãos orientais foram injustamente presos e torturados pelo regime, por causa da paranoia da época da Guerra Fria.
Sua atuação combativa em favor dos direitos dos presos políticos, claro, enfureceu os governantes da época. Poucos dias depois do infame AI-5, Sobral foi preso em Goiânia – embora, para desespero dos militares que vieram prendê-lo, ele não tenha ido calado e passivo. “Meu amigo, o marechal Costa e Silva pode dar ordens ao senhor. Ele é marechal, o senhor major. Mas eu sou paisano, sou civil. O presidente da República não manda no cidadão. Se esta é a ordem, então o senhor pode se retirar porque eu não vou”, disse valentemente ao militar que veio levá-lo. Mesmo assim, ele foi levado, aos berros e de pijama, para o quartel, num episódio constrangedor para o governo (na época, Sobral tinha setenta anos e era o maior advogado do Brasil).
Diz-se que, pouco depois, o próprio presidente Costa e Silva, em pessoa, convocou o advogado para uma “conversa” particular. Desta vez, querendo evitar um novo escândalo, um hábil e educado coronel foi chamado para conduzir Sobral de sua casa até o Palácio Guanabara, onde o presidente o aguardava. Novamente, ele resistiu, porém, por fim, acabou cedendo (“Doutor, não me obrigue, por favor, a usar a força. Não é o meu feitio. Iria me sentir muito mal carregando o senhor de pijama, faça a gentileza de me acompanhar”, havia dito o coronel). Até hoje, o conteúdo da conversa entre o advogado e o presidente é um mistério.
Diretas Já
Já ao final da ditadura, em pleno processo de redemocratização, Sobral se dedicou a participar da campanha das Diretas Já. Aos 90 anos (!), o velho advogado causou sensação ao participar do histórico Comício da Cinelândia, em que citou o artigo da antiga Constituição Brasileira: “Todo o poder emana do povo, e em seu nome será exercido”.
Sobral Pinto manteve-se ativo até a sua morte, em 30 de novembro de 1991, aos 98 anos. Hoje considerado um dos maiores advogados do Brasil, ele empresta seu nome ao prédio da sede da Seccional da OAB do Rio de Janeiro. E, em 2011, foi criada a Medalha Sobral Pinto, criada para homenagear os advogados com mais de 50 anos de profissão e que contribuíram para a evolução da advocacia. Dois anos depois, foi lançado o documentário Sobral – O Homem que Não Tinha Preço, dirigido por Paula Fiuza, sobre a vida do próprio.