Por: Dr.Alexandre Venturini, sócio do escritório Ozi, Venturini & Advogados Associados
Os artigos 5º, caput e § 2º, e 6º, caput, da Lei Complementar nº 105/2001, estabelecem, respectivamente, o dever de as instituições financeiras informarem ao Fisco a movimentação global dos seus clientes (art. 5º, caput e § 2º) e o poder de as autoridades tributárias requisitarem informações específicas e documentos relativos a aplicações e depósitos dos contribuintes (art. 6º, caput).
Ou seja, referidos dispositivos estão a permitir a ruptura do sigilo bancário dos contribuintes pelas autoridades e agentes fiscais de todas as esferas federativas, sempre que haja processo administrativo instaurado ou procedimento fiscal em curso e os exames dos documentos bancários sejam considerados indispensáveis pela autoridade administrativa competente.
Contudo, parece ser livre de dúvidas que os dispositivos ora em análise não estão de acordo com a ordem constitucional vigente, que ainda exige prévia autorização judicial para efeito de quebra do sigilo bancário.
Vejamos.
Como bem se sabe, os poderes de que se acham investidos os órgãos da administração tributária não são absolutos, porquanto estão sujeitos à observância de um complexo de direitos e prerrogativas que assistem, constitucionalmente, aos contribuintes.
Aliás, é da Magna Carta que se extrai a restrição de referidos poderes, mais precisamente do artigo 145, § 1º, cujo teor vale recordar, in verbis:
“Art. 145 – A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão instituir os seguintes tributos:
(…)
- 1º – Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado á administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte.” (nossos os grifos)
Como se vê, o dispositivo prescreve, de forma claríssima, que a administração tributária, quando no exercício de sua competência, deve respeitar os direitos individuais e garantias dos contribuintes.
É de se ter em mente, no ponto, que o Colendo Supremo Tribunal Federal há muito firmou o entendimento de que o contribuinte deve ser preservado contra medidas arbitrárias adotadas pelos agentes da administração tributária, muitas das quais configuram atos eivados de ilicitude, quando não de transgressão à ordem jurídica fundada na própria Constituição da República (RTJ 162/3-6, 4, Rel. Ministro Ilmar Galvão; RTJ 185/237-238, Rel. Min. Sepúlveda Pertence; RE 331.303-AgRg/PR, Rel. Min. Sepúlveda Pertence).
O fato de a Administração achar-se investida de poderes que lhe permitem exercer a fiscalização em sede tributária – e quanto a isto não há a menor dúvida – não significa que ela (a Administração) pode tudo.
Na realidade, os poderes do Estado encontram, nos direitos e garantias individuais, limites intransponíveis, cujo desrespeito pode caracterizar ilícito constitucional, como bem observou o sempre brilhante decano da Corte Suprema, Ministro Celso de Mello, em Acórdão assim ementado:
“ADMINISTRAÇÃO TRIBUTÁRIA – FISCALIZAÇÃO – PODERES – NECESSÁRIO RESPEITO AOS DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS DOS CONTRIBUINTES E DE TERCEIROS.
– Não são absolutos os poderes de que se acham investidos os órgãos e agentes da administração tributária, pois o Estado, em tema de tributação, inclusive em matéria de fiscalização tributária, está sujeito à observância de um complexo de direitos e prerrogativas que assistem, constitucionalmente, aos contribuintes e aos cidadãos em geral. Na realidade, os poderes do Estado encontram, nos direitos e garantias individuais, limites intransponíveis, cujo desrespeito pode caracterizar ilícito inconstitucional.
– A administração tributária, por isso mesmo, embora podendo muito, não pode tudo. É que, ao Estado, é somente lícito atuar, ‘respeitados os direitos individuais e nos termos da lei’ (CF, art. 145, § 1º), consideradas, sobretudo, e para esse específico efeito, as limitações jurídicas decorrentes do próprio sistema instituído pela Lei Fundamental, cuja eficácia – que prepondera sobre todos os órgãos e agentes fazendários – restringe-lhes o alcance do poder de que se acham investidos, especialmente quando exercício em face do contribuinte e dos cidadãos da República, que são titulares de garantias impregnadas de estatura constitucional e que, por tal razão, não podem ser transgredidas por aqueles que exercem a autoridade em nome do Estado. (…).” (HC 93.050/RJ, rel. Ministro Celso de Mello) (grifos no original)
Pois bem.
O sigilo bancário reflete uma projeção da garantia fundamental da intimidade, não se expondo, como não se expõe a intimidade, enquanto valor constitucional, a intervenções estatais ou a intrusões do Poder Público desvestidas de causa provável ou destituídas de base jurídica idônea.
É dizer, o sigilo bancário é espécie de direito à privacidade, sendo certo, pois, que sua proteção adquiriu nível constitucional, como pontifica o Professor Arnoldo Wald, in “Caderno de Direito Tributário e Finanças Públicas”, vol. 1/206, RT, 1992:
“Se podia haver dúvidas no passado, quando as Constituições brasileiras não se referiam especificamente à proteção da intimidade, da vida privada e do sigilo referentes aos dados pessoais, é evidente que, diante do texto constitucional de 1988, tais dúvidas não mais existem quanto à proteção do sigilo bancário como decorrência das normas da lei magna.
Efetivamente, as Constituições Brasileiras anteriores à de 1988, não só asseguravam o direito à privacidade como também, quando tratavam do sigilo, limitavam-se a garanti-lo em relação à correspondência e às comunicações telegráficas e telefônicas, não se referindo ao sigilo em relação aos papéis de que tratam a Emenda nº IV à Constituição Americana, a Constituição Argentina e leis fundamentais de outros países. Ora, foi em virtude da referência aos papéis que tanto o direito norte-americano quanto argentino concluíram que os documentos bancários tinham proteção constitucional.
Com a revolução tecnológica, os ‘papéis’ se transformaram em ‘dados’ geralmente armazenados em computadores ou fluindo através de impulsos eletrônicos, ensejando enormes conjuntos de informações a respeito das pessoas, numa época em que todos reconhecem que a informação é poder. A computadorização da sociedade exigiu uma maior proteção à privacidade, sob pena de colocar o indivíduo sob contínua fiacalização do Governo, inclusive nos assuntos que são do exclusivo interesse da pessoa. Em diversos países, leis especiais de proteção contra o uso indevido de dados foram promulgadas e, no Brasil, a inviolabilidade dos dados individuais, qualquer que seja sua origem, forma e finalidade, passou a merecer a proteção constitucional em virtude da referência expressa que a eles passou a fazer o inciso XII do art. 5º, modificando, assim, a posição anterior da nossa legislação, na qual a indevassabilidade em relação a tais informações deveria ser construída com base nos princípios gerais que asseguravam a liberdade individual, podendo até ensejar interpretações divergentes ou contraditórias.
Assim, agora em virtude dos textos expressos da Constituição e especialmente da interpretação sistemática dos incisos X e XII do art. 5º da CF, ficou evidente que a proteção ao sigilo bancário adquiriu nível constitucional, impondo-se ao legislador, o que, no passado, podia ser menos evidente.”
Daí porque os contribuintes têm direito à inviolabilidade desse direito individual, que, como se sabe, não é absoluto, podendo ceder, em caráter excepcionalíssimo, às exigências impostas pela preponderância do interesse público, na forma e com observância de procedimento estabelecido em lei e com respeito ao princípio da razoabilidade.
Como já decidiu o Colendo Supremo Tribunal Federal, “Não há, no sistema constitucional brasileiro, direitos ou garantias que se revistam de caráter absoluto, mesmo porque razões de relevante interesse público ou exigências derivadas do princípio de convivência das liberdades legitimam, ainda que excepcionalmente, a adoção, por parte dos órgãos estatais, de medidas restritivas das prerrogativas individuais ou coletivas, desde que respeitados os termos estabelecidos pela própria Constituição” (MS 23.452/RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO).
Como se vê, a quebra do sigilo bancário somente pode ser decretada quando existentes fundados elementos que justifiquem, a partir de um critério apoiado na prevalência do interesse público, a necessidade de revelação dos dados pertinentes às operações financeiras dos contribuintes.
E quem detém competência constitucional de aferir a existência dos pressupostos necessários à ruptura do sigilo bancário são, apenas e tão somente, os órgãos do Poder Judiciário. A autoridade administrativa não pode, jamais, interferir na esfera de privacidade constitucionalmente assegurada aos contribuintes.
Apenas o Judiciário, ressalvada a competência das Comissões Parlamentares de Inquérito (artigo 58, § 3º, da Magna Carta) pode eximir as instituições financeiras do dever que lhes incumbe em tema de sigilo bancário.
Outro argumento válido, a demonstrar a necessidade de intervenção do Poder Judiciário, no que pertine à quebra do sigilo bancário dos contribuintes, diz respeito ao dever de imparcialidade, indispensável à aferição quanto à existência dos pressupostos necessários a tal ruptura.
Este dever de imparcialidade é próprio do Poder Judiciário, e não se estende ao Fisco, porquanto é ele parte interessada na investigação.
Ou seja, a aferição quanto à existência dos pressupostos necessários à ruptura do sigilo bancário não pode, data vênia, ficar a cargo de quem não detém o dever de imparcialidade, como é o caso do Fisco, que – repita-se – é parte na relação mantida com o particular.
Neste sentido, pontificam Ives Gandra da Silva Martins e Miguel Reale, verbis:
“Exceção às CPIs, para as quais são inerentes poderes próprios de investigação judicial por outorga constitucional, não podem outros órgãos, poderes ou entidades não autorizados pela Lei Maior, quebrar o sigilo bancário e, pois, afastar o direito à privacidade independentemente de autorização judicial, a pretexto de fazer prevalecer o interesse público, máxime quando não têm o dever de imparcialidade por serem PARTE na relação mantida com o particular” [1]
Na mesma linha de pensamento, Ricardo Mariz de Oliveira:
“Neste particular, não se pode deixar de considerar que o braço executivo do Poder Público é parte no processo, convindo, portanto, ser submetido ao prudente e autorizado braço judicante que, juridicamente e de fato, é independente daquele” [2]
Importante aduzir, no ponto, que o Plenário do Colendo Supremo Tribunal Federal, em sessão realizada em 15 de Dezembro de 2.010, ao julgar o RE nº 389.808/PR, de relatoria do Ministro Marco Aurélio, manifestou entendimento coincidente com aquele até aqui defendido, no sentido de que quaisquer informações bancárias dos contribuintes somente podem ser acessadas pelo Fisco através de ordem emanada do Poder Judiciário.
Confira-se, a propósito, a ementa do julgado:
“SIGILO DE DADOS – AFASTAMENTO. Conforme disposto no inciso XII do artigo 5º da Constituição Federal, a regra é a privacidade quanto à correspondência, às comunicações telegráficas, aos dados e às comunicações, ficando a exceção – a quebra do sigilo – submetida ao crivo de órgão equidistante – o Judiciário – e, mesmo assim, para efeito de investigação criminal ou instrução processual penal.
SIGILO DE DADOS BANCÁRIOS – RECEITA FEDERAL. Conflita com a Carta da República norma legal atribuindo à Receita Federal – parte na relação jurídico-tributária – o afastamento do sigilo de dados relativos ao contribuinte.”
Por tudo quanto foi exposto até aqui, é possível concluir que eventuais provas obtidas pelo Fisco, que sejam decorrentes da ruptura do sigilo bancário dos contribuintes, sem autorização judicial, são ilícitas, não podendo, portanto, servir de substrato ao lançamento de crédito tributário.
[1] Parecer de Miguel Reale e Ives Gandra Martins, consultados pela Ordem dos Advogados do Brasil, Secção São Paulo, publicado no site Consultor Jurídico em 11 de dezembro de 2002, www.conjur.com.br.
[2] Oliveira, Ricardo Mariz de. Direitos fundamentais da pessoa e do contribuinte In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coord.). Direitos Fundamentais do Contribuinte. Pesquisas Tributárias, Nova Série – 6. São Paulo: Centro de Extensão Universitária/Ed. Revista dos Tribunais, 2000.
Alexandre Venturini
Sócio e Advogado do escritório Ozi, Venturini & Advogados Associados